A chegada a um outro país é sempre motivo de excitação, seja esta boa ou ruim, excitação nem sempre é uma coisa boa, geralmente é, porque é também sinônimo de entusiasmo, no entanto, naquele dia, me dava um pouco de medo também; medo sim, porque eu havia programado uma viagem de dois meses e acabava de chegar a um lugar muito longe de casa: Madri, Espanha.
Eu finalmente podia acender um cigarro. O funcionário da imigração olhou para a minha cara de latino-americana fumante, me viu tirar o maço do bolso. Eu perguntei pra ele se precisava passar por alguma entrevista, ou algo do tipo, ele sorriu com aquela cara de latino-europeu fumante e disse: “Você está livre agora”. Nada poderia me causar mais alívio.
Saí do aeroporto.
Cigarro.
Sentei com a mala em um banquinho, não estava tão frio. Naquele momento eu só precisava fumar oito cigarros, encontrar o papel amassado com o endereço do albergue, pegar o metrô e chagar lá. Definitivamente aliviador – se é que essa palavra existe.
Aquela filha da puta daquela mochila estava muito pesada. Cacete! Era um peso desgraçado e eu sentia meus ombros rasgando. Meu coraçãozinho latino-americano se encheu de alegria ao ver a porta do albergue.
Check in.
“Brasileira, huh?” – disse o recepcionista.
“Espanhol, huh?” – eu respondi.
“Aonde eu posso comer alguma coisa?”
“Fala com o Adrián, ele cuida da cozinha.”
“Você é o Adrián?”
“Sou eu.”
“Je.... a Paris... Ooh la la! Oui... No...” – escutei.
“Française?” – perguntou o Adrián à menina francesa que, como muitos franceses, só falava Francês.
Eles depararam a falar em Francês. Caralho. Comida, porra!
“Ô Adrianzão, meu chapa..”
“Oh pardon!”
“No, je ne parle pas Français... Cê é francês?”
“Não, basco.”
Óbvio, ele não podia ser Francês. O Adrián era careca, lembrava um pouco o Barthez, mas tinha olhos azuis e olheiras bem demarcadas. Não tinha sobrancelhas ou barba. Uma mistura de Barthez com Collina talvez, mas mais novo que ambos, suponho eu, aquela mistura de bola de boliche com cabeça de lâmpada, porque ele era assim... Um tanto lustroso, magro no entanto; também bem narigudo e bem antipático, um pouco grosseiro na verdade. Não. Talvez nem grosseiro, nem antipático, só esnobe – neste caso, ele poderia ser Francês sim, mas enfim, era basco.
E aonde os bascos nascem? Eles precisam nascer nos países bascos para serem bascos? Ou basco é tipo Judeu – você pode encontrar um em qualquer lugar e eles se reconhecem entre eles mesmo uns sendo morenos e outros loiros? Eu, na verdade, não sei bem o que é um basco, só sei que eles existem, tipo os curdos. Mas o Manu Chao é basco e eu sei disso, e ele não parece nem com o Barthez, nem com o Collina, nem com o Adrián, e ele nem é espanhol, é francês, ou seria simplesmente basco? Tipo, um "citzen of the world"? Esse lance dos Bascos é complicado...
“Basco? Ah, eu conheço um basco!”
“Sério? De onde?”
“Ah, de CDs. O Manu Chao. Ele é basco, não é?”
Sorriso.
“Sim! Você gosta dele?”
“Claro, adoro os bascos!”
“Que ótimo!... Hey, espera um minuto!”
Putz, fome! Muita fome!
Opa! “Clandestino”, isso é Manu Chao!
O Adrián vinha meio pulando, meio andando e até meio cantarolando e, impressionantemente, simpaticamente sorrindo.
“Vê? Manu Chao!”
“Que ótimo! Manu Chao”.
Yeah! Desbanquei a francesa na difícil saga pela comida no albergue.
Comi. Ufa!
Depois do papo sobre o Manu Chao, o Adrián virou brother, me deu até um café a mais no dia seguinte, na hora do café da manhã. Legal!
Obviamente eu fiquei pensando sobre o que é ser um basco, mas não podia perguntar isso a ele, então peguei um mapa no albergue e tentei achar os países bascos, mas eles não estavam lá. Os países bascos são vários países ou é um país só chamado “Países Bascos”? Antes de entrar em crise existencial por me achar um ser ignorante e prepotente, fui ao wikipedia e lá encontrei informações sobre os bascos.
Alívio.
Não dormi, ainda eram seis da tarde. Eu e minha companheira de viagem, a Malu, resolvemos sair para ver o que é que o Madrilenho tem e fomos em busca das cervejas. Não sei se o mais adequado é beber cerveja na Espanha, mas é de cerveja que eu gosto. Talvez seja algo hereditário.
Meu bisavô cresceu na Alemanha, mas era Iugoslavo (o que significa que hoje, não sei dizer exatamente de onde ele era, já que a Iugoslávia não existe há algum tempo); lembro dele sentado em uma cadeira de balanço, bebendo, quase o dia todo, aí ele ficava bêbado e dormia. E ele só bebia cerveja. Por isso, em casa, todo mundo bebe cerveja. Não temos uma cultura latina, não bebemos vinho, e eu nem sei reconhecer um vinho bom ou um vinho ruim antes da dor de cabeça. Esse bisavô tinha um problema nas bolas, as bolas dele eram enormes e minha avó queria que ele operasse de qualquer maneira, ele nunca quis deixar ninguém mexer nas bolas dele. Morreu disso, das bolas, e não do fígado – como imaginávamos que ele morreria, mas morreu bêbado, em casa, e as bolas dele estavam tão inchadas quanto intocadas, a galera não conseguia achar uma calça que se adequasse ao velho defunto. E, obviamente, os homens da minha família morrem de orgulho disso – gente esquisita.
Ah, voltando à cerveja.
Saímos.
Bebemos.
Tomando o caminho de volta eu já não estava nos meus melhores estados mentais. Vi um Mustang fundido em uma parede; na verdade, só a frente de um Mustang. A Malu me perguntou como eu sabia que aquele carro era um Mustang. Não soube responder, porque apesar de eu não saber o que é um basco ou um iugoslavo, eu sabia o que era um Mustang. E era um Mustang azul calcinha – legal. Era a frente de um bar e tinha uma plaquinha piscando escrito “Karaokê”. Pô, karaokê é legal.
“Vamos aí?”
“Vamos!”
Fumaça. Não dava pra ver os rostos das pessoas direito, e não só porque eu já estava meio bêbada, mas porque não dava mesmo. Era escuro e tinha muita fumaça. Um balcão, uma bartender com mais cara de latino-americana fumante que eu, usava decote, peitudíssima; meu pai acharia que ela gostosa, eu achei um pouco gorda. Maquiada.
Banquinhos de oncinha, zebrinha e tigrinho. Reduto dos quarentões espanhóis.
Um dia na vida você aprende que por mais que você ache que já tenha visto o brega, ainda existe a música pop espanhola – e lá estava ela, no meio da fumaça, dos quarentões, dos banquinhos de oncinha, da bartender peituda e do Pepe. Sim, ele, o Pepe!
O Pepe era espanhol, quarentão, estava no bar e veio falar comigo. Pepe – legal. O Pepe era um pouco gordo, camisa xadrez e cantava música pop espanhola.
“Pepe! É idiota? Você é idiota, Pepe?”
“Mas o que foi agora, Juan?”
“Pô, Pepe! Você sabe que tem que ficar de olho! Eles estão por toda a parte! Não pode ficar bebendo a noite toda, tem que estar sóbrio para vigiar!”
“Tudo bem Juan, você vigia a porta e eu continuo aqui, sem beber.”
“Vou confiar em você!”
E o Juan foi vigiar a porta.
Cinco minutos depois, ele volta com o José.
“Não tem condições! Vocês dois me deixam doido! Não posso fazer todo o serviço sozinho e... E você, quem é?”
“Eu? Ah, eu não sou daqui não, sou brasileira.”
“Brasileira? Eu sou Juan, de Sevilla. Da polícia secreta de Sevilla, mas agora estou aqui em Madri.”
“Ah, sim, sim, claro!”
“Conhece os mouros?”
Calma! Pára tudo! Os bascos já eram complicados o bastante, e ele me vem com os mouros. Um cara, naquele bar, com um amigo chamado Pepe, no meio daquele terrível pop espanhol, da polícia secreta, falando dos Mouros?
“Malu, esse cara existe ou eu preciso ir vomitar?”
“Não precisa, ele existe, mas se quiser uma desculpa pra ir ao banheiro...”
Ottelo era mouro e ele era moreno, acho que os mouros são morenos, mas não negros. Agora não sei se existe mouro negro, porque existe judeu negro, mas não existe basco negro... No entanto, é possível que existam mouros judeus. Puta merda!
Wikipediaaa!!!
“Mouros?”
“Sim, os mouros! E os bascos...”
“Ah, os bascos! Eu sei quem são os bascos.”- Oba!
“Sabe? Hmmm... Eles explodiram Atocha, e vão explodir de novo! Por isso fui enviado com Pepe e com Jose, estamos vigiando...”
“Vigiando... Os mouros?”
“É! E os bascos! Que vão explodir Madri!”
“Entendo, entendo... Olha, eu conheço um basco.”
“Não me diga!”
“Sim, sim. O Manu Chao. E, pelo que sei, ele vai explodir a Atocha, é um líder Basco, mas você provavelmente já sabe disso.”
É claro que eu não ia entregar o paradeiro do Adrián, mesmo porque, sem o Adrián não tinha cafezinho de graça e nem Manu Chao no saguão do albergue. Além do mais, o paradeiro do Adrián era exatamente o mesmo que o meu, se o Pepe, o José ou o Juan me torturassem, eu ia ter que contar. Já o paradeiro do Manu Chao, ele poderia encontrar na parte de “cultura” do jornal. Entretanto, me arrependi depois, porque sem Manu Chao não teria Manu Chao nem no saguão do albergue, nem em lugar algum.
Ai meu Deus!
Juan permaneceu calado por aproximadamente dez segundos, fiquei com um pouco de medo sobre o que ele poderia fazer comigo, mas ele sorriu, abaixou a cabeça e sorriu de novo. Finalmente, ele olhou bem pra mim e indagou:
“Eu já saquei! Eu saquei tudo. Você também foi enviada pra cá, pra me dar essa grande pista!”
Antes de eu realmente acreditar que era Mata Hari em uma missão secreta e entrar na onda do Juan, perguntei ao Pepe:
“Ele já trabalhou para a polícia? Enlouqueceu na guerra ou alguma coisa do tipo?”
“Ele é amigo de infância, se mudou pra Madri há algum tempo e é carteiro há uns dois anos, antes disso morava com os pais em Toledo”
“Ah sim, entendo...”
Fiquei feliz com a resposta de Pepe, porque na linha tênue entre a sanidade e a embriaguês da minha cabeça de bagre, eu esperava uma resposta como: “Sim, somos parceiros, agora pare de beber e vamos vigiar, porque eles vão explodir Atocha!”
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