Sunday, March 14, 2010

Desabafo de uma editora júnior frustrada


É, o punk morreu e o comunismo deu errado. Desculpe-nos Marx, e perdão Lênin: o mundo é, oficialmente, capitalista. Muito por conta do capitalismo é que o punk está morto. Se você conhece Green Day, consegue fazer a conexão entre os fatos por conta própria.

Nós, os defensores do mercado livre, vencemos. Agora temos Slumdog Millionaire ganhando Óscares e Avril Lavigne vendendo CDs. Ah, capitalismo, você me mata.

Mas eu me recuso a imitar Adorno nesse texto. Meus problemas vão além da relação arte vs. capitalismo. O drama da vez é ser subestimada.

Vejam vocês, depois de muito falhar em vários empregos, desenvolvi minha própria teoria sobre o porquê do mercado de trabalho ser um saco. Aliás, mais que um saco, o mercado de trabalho não funciona.

Eu já trabalhei em agências publicitárias, canais de notícias, TV a cabo e empresas de produção – entre elas, a Universal Studios.

O esquema das empresas do mundo criativo é o seguinte: eles te contratam como estagiário após você terminar a faculdade. Você está lá, com seus 22 ou 23 anos. O mundo é um poço de inspiração para alguém aos vinte poucos anos. A criatividade é radiante.

Para explicar melhor: vocês já observaram um filhote de cachorro? O filhote fica encantado com as coisas mais bestas: se embola embaixo do lençol e fica doido tentando sair dele, corre atrás de folhas de árvore na praça, pula em tudo, acha demais quando as ondas da praia molham as patinhas dele... entre outras gracinhas de filhotes.

Aos vinte poucos anos, você é um filhote.

Se chefe, um cara com seus quarenta e poucos anos, é um cachorro velho.

Vocês já observaram cachorros velhos?

Os cachorros velhos não caçam mais, não pulam e quase não latem. Ficam lá, comendo e dormindo. O mundo de um cachorro velho não é muito interessante. Eles já sabem que as ondas do mar vêm e vão, que se eles se embolarem num lençol vão demorar pra sair dele, que folhas de árvores não são muito legais... entre outras chatices de cachorros velhos.

Com o passar dos anos, o ser-humano cansa também.

Lembro-me de quando estava na agência Laser, aqui mesmo em Fort Lauderdale. Eu trabalhava na sala ao lado do Joe. O Joe era um cara de uns setenta e poucos anos que fazia parte do departamento de contabilidade. Ele já era aposentado, mas continuou trabalhando para pagar a faculdade do filho.

Uma vez, a secretária do chefe trouxe bolachas e coca-cola pra comemorar os 20 anos da agência. Ao ver aquilo, eu pulei da cadeira e gritei:

- Bolacha com coca-cola!

Meu dia se tornou tão mais alegre!

Olhei pra cara de bulldog cansado do Joe, que nem se mexeu ao ver as bolachas, e falei:

- Joe! Tem bolacha com coca-cola no saguão. Vai lá antes que acabe!

A resposta do velho foi, em palavra por palavra, esta:

- Ah, eu já comi tanta bolacha. Já tomei tanta coca-cola. Vai lá você que ainda se anima com isso.

Taí a prova! Eu só tenho 24 anos. Passei menos de um quarto de século comendo bolacha e tomando coca. Ainda é novidade. Mas o Joe, esse já tá com quase três quartos de século nas costas. O pinto não sobe mais, as pernas já não agüentam andar muito e o cabelo já caiu. Ele não tá pensando em bolacha. Ele tá é pensando em viagra, fisioterapia e implante capilar.

Acontece que, no mundo corporativo criativo, você precisa ser velho para ter algum poder de decisão. Ninguém vai deixar um estagiário editar um vídeo que vai ao ar. Você, aos vinte poucos anos, nunca vai lançar uma campanha. E esqueça sobre fazer um logo para uma empresa minimamente grande.

Tudo que acontece no ramo do entretenimento e da publicidade tem que passar por um artista sênior (o nome já explica a idade do cara que tem esse cargo) e, depois, pelo diretor de arte. Se aprovado, o que é raro, seu trabalho vai para o diretor de marketing. O diretor de marketing nunca vai aprovar de primeira. Ele te manda mil correções em um e-mail e pede para que elas estejam prontas em três horas. Você quer se matar.

Três horas mais tarde...

...Você manda o novo trabalho para o artista sênior, que manda para o diretor de arte, que manda para o gerente de marketing - que agora aprova, que manda para o CEO, que te passa um e-mail com mais mil correções.

Esse é o ciclo.

Dois meses mais tarde...

...Você ainda não terminou o projeto. Agora o gerente de marketing está falando pro artista sênior que o vermelho tá muito vivo, tem que ser vinho. O CEO quer saber porque a atriz tem olhos verdes e não azuis. O diretor de arte está comendo a atriz. Quem liga pros olhos quando a bunda é boa? E você não tá fazendo porra nenhuma porque, afinal, você é só um estagiário sem qualquer voz naquela empresa.

Com sorte, eles te contratam. Você é editor júnior* agora – o que significa que você continua sendo um estagiário, mas agora eles são obrigados a te pagar alguma esmola. Você fica lá sendo editor júnior por um ano ou mais. Com sorte, em dois anos, você vira editor. E aí você fica sendo editor até o editor sênior morrer ou ser demitido. É isso. Fim da sua carreira.

Talvez, com muita muita sorte mesmo, quando você estiver lá pelos seus cinqüenta e poucos anos, você chegue a ser diretor de alguma coisa. Mas aí... Lembram do cachorro velho?

Aos cinqüenta, salvas raras exceções, você quer mais é que o mundo se foda. Você vai estar escolado, gasto, engolido e vomitado pelo esqueminha “agência”. Você não vai querer pensar em campanhas revolucionárias, porque, muito provavelmente, você estará preocupado em como a sua filha vai encarar a faculdade ou com um divórcio em potencial. Sua cabeça cansada precisará de férias e caipirinha. Seu corpo vai querer massagens e quem sabe até fisioterapia, por causa da sua escoliose.

O programa de funcionários em empresas criativas está matando a parte “criativa” da coisa. É por culpa desse sistema que comerciais de TV estão cada vez mais chatos, campanhas publicitárias são cada vez mais sexistas e bobas, modelos são cada vez mais magras e nojentas; e, por fim, a TV está um lixo.

É claro que a experiência é importante. Existem diretores de arte brilhantes com seus setenta e poucos anos, eu sei disso. Mas, mundo criativo, se só por um momento vocês olhassem fora das suas bolhas multimilionárias e cheias de fórmulas para o sucesso, vocês veriam que existe um mundo de jovens que não são retardados e que, por serem jovens, têm mais tempo para ser criativos. Não esperem até que nossas colunas doam, até que nossos filhos cresçam, até que nossos cérebros cansem... A hora é agora!

Obviamente, eu não conseguiria fazer com que um só diretor de marketing lesse esse meu desabafo, porque editora júnior é paga pra logar fitas, não pra ter opinião. Daqui 20 anos, quando eu for bem treinada a não ter opiniões, eles me deixarão dar uma palavrinha ou outra.

*júnior
jú.nior
adj (lat juniore) Mais moço. (Usa-se depois do nome de uma pessoa, para distingui-la de outra, mais velha, da mesma família, que tenha o mesmo nome.) sm Esp Designativo dos que pertencem à turma dos concorrentes mais moços. Antôn: sênior.

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